sexta-feira, 7 de maio de 2010

O corpo de Elena.

Eu estava lá, de pé dentro de uma rede, pendurada em uma árvore.
-Quando eu era criança, pendurava uma rede pelas duas pontas num armador, depois entrava dentro dela, parecendo uma banana tomada pelas "paredes" da rede, e ficava brincando. Era exatamente o que eu fazia. As folhas da árvore balançavam e eu ia de uma ponta à outra, passando pelas pessoas sentadas em fileira de frente para a lateral da árvore. Eu ia e vinha, e um bebê, no colo de uma mãe, sorria. Estavam todos esperando, esperando alguma ordem que viria da eclésia monástica da cidade. Parece que eram eles quem davam a última palavra por ali. Então eu me balançava, e, do alto da árvore e da rede, podia ver o interior do edifício bem construído, ares de séc. XVII, erguido a pouco custo e já deteriorado pelo tempo e pelo esquecimento da cidade. Lá dentro, alguns padres e sacerdotes sentados, outros andando pelos corredores e lá atrás uma luz, vinda como dos fundos de uma igreja, revelava uma pequena cúpula que discutia preocupada sobre alguma coisa. Acho que a resposta que os pobres esperavam.

Girava ao redor da árvore, até onde os galhos me permitiam, e via na escuridão da noite, no passar das horas tristes da cidade, uma encruzilhada de terra, a passagem principal do povoado. Lá, uma pequena construção, igualmente deteriorada e esquecida, algo que lembrava um mastro, mas que, na verdade, deveria ter sido há muito tempo atrás um reservatório de água. Restava ainda a bomba antiga. Sob o pé da construção, uma pequena elevação de terra. Passava ali, e via os restos parados do tempo, os ares abandonados, os olhos dos que ficaram.

Mais adiante, numa varanda, uma moça trágica de pele clara e cabelos cor de ouro velho, soltos, exibia seu corpo nu deitada sob o peito do amante. Ainda apaixonada e doce, o corpo exalando aquele ar de pureza recém abandonada, passava a mão sobre o ventre e eu podia ver entre suas pernas aquele sexo miúdo em traços infantis. Percorria a sua mão pela pele e pelos cabelos e dizia: - Eu vi o meu corpo, cada vale da cidade, e estava cheio de vermes. Então eu mesma podia ver o seu corpo: ela deitada sob a areia, várias erupções e deformidades na terra, seus cabelos espalhados, seus olhos fechados, seus braços abertos, as pernas estendidas, e como se o seu corpo inteiro fosse apenas um vão cavado na terra, cheio de sulcos, vermes se moviam de um lado para o outro. E então novamente a cidade. Os vermes se moviam sob a cidade. Haveria guerra, a cidade seria destruída. A cidade perdida e abandonada seria devastada por explosões, rasgada por facas e balas de canhões.

Então eu corria, e via que um clima de inquietude exalava noite afora. Não havia para onde ir. As pessoas se moviam confusas à espera de algo que sequer sabiam, a mercê da desgraça iminente, pois não havia como sair dali. Levavam seus sacos de cereais, um punhado de roupas e um punhado de filhos para um lugar qualquer, embora não houvesse construções seguras naquela cidade. Apenas galpões cheirando a tonéis de vinho e comida envelhecida. Os cachorros perambulavam magros e indiferentes, como se à espera de uma compreensão pelo capítulo final. Já não tinham dono. Os seus, cuidavam de salvar a própria pele e a pequena prole atordoada.

Em uma esquina eu encontrava um bar onde alguns homens discutiam, passava então despercebida, pois pretendia entrar na casa do dono. Antes de chegar lá dentro, ainda no meio da rua, pude ver os soldados em seus trajes sujos de areia e desbotados pelo uso e pelo tempo. Um uso sem valia. Naquela cidade não havia pelo que lutar, não havia do quê a proteger. Mas usavam a farda, a mando da casa de milícia, por pura formalidade. Tinha tons de azul e vermelho, e algo de dourado, que àquela altura não era mais que uma amarelo pálido.

Os soldados empunhavam espingardas com baionetas. Sim! baionetas. Matariam os seus a canhões, tiros de espingarda e baionetas. Marchavam semi-dispersos pelas esquinas da cidade quando eu entrei na casa. Lá dentro não me senti aliviada, tampouco protegida. Apenas à procura de um possível abrigo. Via numa sala seguinte, uma porta entreaberta que dava para uma espécie de garagem. Um lugar grande, espaçoso, abandonado e cheio de areia. Havia chão de areia e areia guardada como se de uma construção interrompida. Lá no fundo, bem no cantinho, um fosso houvera sido escavado. Eu fui até lá, inspecionei e decidi que lá ficaria. Cavei o mais que pude o local, arrumei umas caixas de madeira carregadas de areia, dispus ao redor do buraco e pus no chão alguns lencóis. Havia um cão deitado em uma das caixas. Ele havia chegado lá primeiro. Seus olhos submissos e ávidos de compreensão, esperavam que resolução eu tomaria. Eu era um humano, ele um cachorro, se eu o expulsasse dali, certamente iria. Não o fiz, nem o faria. Eu invadira o espaço dele e agora pedia permissão para ficar e nos proteger. Em troca ele me faria companhia. E isso era tudo. Havia também um pequeno lêmure de corpo comprido e assustado que eu encontrara enrolado entre os lençóis. Parecia estar um tanto machucado e por isso tremia de medo. Eu precisava enrolá-lo para que não fugisse e sentia quando o líquido quente de sua urina atravessava as tramas do tecido. Agora eu teria que terminar de arrumar meu pequeno bunker de areia e lençóis, frágil, velho e opaco como tudo ali. Então, sem saber se de longe ou de perto, os bombardeios começavam. Lá do alto, bem de cima, subindo cada vez mais, eu via a cidade cinza, queimada e vazia. O galpão estava de pé. Metade da casa em ruínas, mas o galpão ainda estava lá. Onde eu estava? Não sei, também quis saber. A pequena cidade de Elena, pobre e corrompida, havia sido tomada pelos vermes: a guerra. E ela, Elena, a cidade, restava agora estendida sob a areia fria e sinuosa, cheia de cinzas e em pedaços..

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