sábado, 15 de maio de 2010

Heidegger afirma em sua filosofia do abgrund* que o ente dissimula a existência do nada. Isso se dá quando o ente se aproxima dos outros entes e esquece de sua condição original fundamentada no nada. A angústia, estado de ânimo por meio do qual o nada se manifesta, apresenta um dissipar dos entes, ele nadifica-os, ainda que por instantes, e por isso toda a verdade do ser (que é originariamente suspensa no nada) se apresenta. Ou seja, na angústia temos um contato com o ser, mas, cotidianamente, dissimulamos esse nada fundante, o que se dá através da aproximação de nós, enquanto entes, dos outros entes. Em contato com o fundamento, portanto, estamos sozinhos. Aí se apresenta toda a angústia e verdade do ser...

Uma coisa que sempre me incomodou muito e eu nunca soube explicar bem o porquê, foi essa afirmativa de que os homens são seres sociáveis. Não conseguia entender por que motivo sempre tive dificuldades em me relacionar. Sempre preferi observar, esperar alguma coisa me atingir, alguma coisa que pudesse valer à pena. Isso aconteceu algumas vezes, poucas mas aconteceu.

Sei que existem vínculos entre os seres (o que Heidegger chamaria de ente) que não são tão facilmente explicados, mas que sim, diante de uma árdua reflexão e ferramentas corretas se tornariam elucidados, a amizade, por exemplo, ou até mesmo o amor. Não falo aqui da maneira como estes sentimentos se manifestam biologicamente, esta seria uma resposta muito limitadora. Os resultados científicos são sempre simplistas, oferecem apenas uma face do dado, em meio a vastidão que implica começo, meio e fim, do que é esse ente privilegiado. Venho aqui, portanto, excogitar sobre o meu ponto de vista sobre as relações e utilizo para isto, a ferramenta que faz do homem o homem.

Por muitas vezes me senti preenchida por alguns sentimentos, mas sabendo que eram todos eles momentâneos. Poucas coisas na minha vida, e digo até coisas bem simples, coisas das quais poucos entenderiam, tomaram fragmentos de minha existência e me compuseram. Sinto uma certa nostalgia dessas pequenas coisas porque sei que hoje estão muito distantes e dificilmente as encontrarei novamente. Mas nos afastando das coisas e partindo para as pessoas, nunca fui de me lançar, sempre estive a observar.

O que lembro desde sempre ser vívido em mim e na minha infância é a observação dos comportamentos alheios. Me perguntar o porquê das coisas, esperar para saber o resultado, e ele sempre vinha, mesmo enquanto uma incógnita de onde retirava eu mesma uma conclusão. O perigo estava, e sempre esteve, no fundamentar-se em conclusões erradas. Mas até que os resultados chegassem, como instintivamente fazemos, ia experimentando, pois nem só de racionalismo vivemos. Assim se constituíram grande parte das minhas relações: resultado de experimentos e observações.

A verdade é que tentei muitas e muitas vezes me relacionar, acreditar em relacionamentos, mas desde sempre percebi que para mim, os relacionamentos apenas me eram dados, eu os usava, sentia-os, moldava-os, me moldava também, vivia-os e numa bela hora eles simplesmente se dissipavam. Mas mais que isso, o difícil não era vivê-los e sim começá-los. É certo que longamente me dei superficialmente aos relacionamentos, isso porque, como acontece com todo mundo, nem sempre as pessoas vêm para se instalar naquela argila fresquinha, pronta para ser moldada e cozida de modo a se tornar sólida, embora frágil, que é o lugar que reservamos para aqueles entes que queremos que fiquem. E não existe nada mais chato que relacionamentos superficiais: você clamando por algo sólido, enquanto te oferecem de volta poeira e areia seca! Lidei longa e arduamente com esse tipo de coisa e por isso fazia coisas por mim mesma, coisa que não queria partilhar com ninguém, mas que, ao mesmo tempo, queria que alguém descobrisse. Saberia que essa ou essas pessoas valeriam à pena porque teriam sido capazes de observar. Como cores que só se revelam diante de uma determinada luz, aquelas pessoas portadoras desse dom de enxergar, automaticamente poderiam se tornar possíveis em um relacionamento comigo. Não estou me colocando aqui como algo infinitamente especial e inacessível, mas apenas classificando um grupo, que eu sei que existe, que possui afinidades muito e muito próximas das minhas, tornando assim possível um relacionamento.

Bem, a verdade é que relacionamentos se tornaram possíveis ainda assim (com ou sem grandes descobertas), mas não permaneceram. Isso como se houvesse em mim um pressuposto onde a permanência fosse impossível! Passei a viver de marcas. Mas procurei sempre e sempre aprender e me encontrar em cada um delas. Não que a existência de um relacionamento fosse imprescindível para que eu pudesse me descobrir. Me descobriria de qualquer outra forma, mas com cada um deles, a maneira como tive de lidar e lidei, me ensinou sobre o que eu sou. Vieram e foram, marcaram e deixaram em mim o que eu sou hoje! Eu sei que ainda há muito por se definir, mas também já sei muito bem como é que funciona, e embora não saiba quando ou como acontecerá, sei como o sistema se estrutura. Haverão os próximos, as próximas experiências, as próximas etapas de meu caminho em busca de mim mesma.

Complicado pra minha cabecinha tentar abarcar cada milímetro, cada suave declinação das coisas que implicam o que foi e o que é para mim se relacionar. O que eu quero dizer é que hoje, depois de perceber que as coisas sempre vão, aprendi que estamos mesmo sozinhos. Que somos algo aprisionado em uma gaiola. Algo que sente, se move e se comunica. Sentimos uma necessidade profunda de trazermos o outro para dentro de nós, de dividirmos esse nada que nos atormenta, e aqui posso, inclusive, mencionar uma definição interessante de compaixão dada pelo escritor Milan Kundera. Para ele, segundo uma análise etimológica, compaixão seria uma espécie de telepatia de sentimentos. Um vínculo que pode ser considerado forte porque embora o outro não esteja lá, flutuando na bolha do nada e da angústia alheia, imagina e pode, por analogia, sentir o que o outro sente. Assim, creio que bem como existe essa ferramenta para um relacionamento, não a compaixão propriamente dita, mas a imaginação, a analogia, existem outras vias que tornam sim, um relacionamento possível. Nenhuma porém, que lhe faça ocupar o espaço com o outro ou do outro, mas que o aproxime.

Não estou, em absoluto, discordando de Heidegger, pelo contrário. O abismo dele faz todo sentido pra mim. Estou apenas abordando, em meu conhecimento limitado, outras vias possíveis que a experiência e a observação me proporcionaram acerca do relacionamento entre os entes, mais propriamente aquele privilegiado, o homem. E quero ainda acrescentar, que é exatamente isso que eu penso: não existe nada que faça da sociabilidade uma lei. Nem mesmo a máxima de Aristóteles**, pois assim como precisamos do outro para conhecermos a nós mesmos e um outro mundo possível, precisamos também, desesperadamente, de solidão. É apenas lá que nos encontramos. O que me motivou a escrever isto aqui, foi o fato de que observo hoje uma ditadura da felicidade e da sociabilidade. Isso é um pesadelo e muitas vezes nos deforma! Procuramos desesperadamente o outro, o outro, mas o outro nem sempre está lá, nem mesmo quando ele está. Montaigne dizia, segundo uma afirmativa estoicista, que filosofar é aprender a morrer. Eu entendo que filosofar é começar a compreender, a elucidar, a descobrir que o óbvio nem sempre é o óbvio. Que o óbvio pode, na verdade, não passar de uma linda falácia! E, descobrindo a essência das coisas, não há nada mais a ser feito senão trabalhar as suas potencialidades. Só!

Eu ainda não aprendi a morrer, mas aprendi que determinadas coisas são. E que não podemos levá-las a lugar algum. Diante dessa constatação, nada mais nos resta senão aceitar as coisas como elas são, porque tentar modificar algumas delas é um punhado de esforço inútil. Nós observamos, sentimos, tentamos perceber qual é a maneira melhor, mas além disso, não há nada mais. Apenas a resignação. Isso não faz de mim uma contra- revolucionária, eu até acredito nas revoluções, mas sei que depois da balbúrdia todo barro assenta até que se manifeste novamente uma insatisfação, e com ela um novo mover de águas, e depois um novo assentamento e assim por diante..

Enfim, estamos suspensos no nada, mas o nada nos proporciona possibilidades, são nessas possibilidades que podemos encontrar as ferramentas adequadas para fazer alguma coisa, embora seja fato que voltaremos sempre ao princípio. É com relação a isso que penso não existir nada que possa ser feito. E é talvez aí que resida a sabedoria proporcionada pela filosofia: o conhecimento de que as coisas são e além disso, nada mais. Estamos presos a uma constatação. Enquanto houver vida e, sob sua estrutura, o posterior é uma incógnita. O nada, ouso dizer, envolve-nos de maneira tal, que se encontra antes e além de tudo, como um grande suporte. O que eu quero dizer com tudo isso? Que eu não gosto das perfeições, não as humanas, que perfeição humana, para mim, implica imperfeição. Só é perfeito aquilo em que o imperfeito se dispõe de uma maneira especial. E que a partir daí, não entendo como pessoas vivem unicamente a mercê das relações, principalmente as falsas; como o mundo se estrutura e se move sobre esses esquemas, onde tudo deve ser bom, feliz e eterno, e mais, sob um viés capitalista, onde a felicidade se estampa em tudo lindo, novo e em sorrisos perfeitos. Até o imperfeito, o corriqueiro, o comum é tomado e readaptado ao consumo, de maneira que tudo se padronize. Desde sempre educados assim, sentimos uma dificuldade imensa em nos reencontrarmos. Em descobrirmos que o óbvio não é o óbvio, é uma falácia, uma estratégia. Que precisamos desesperadamente de relacionamentos reais, mas que dispomos daqueles duplamente fajutos, primeiro porque não se pode se relacionar profunda e satisfatoriamente com ninguém, segundo porque além disso, buscamos satisfação nos relacionamentos falsos, ou pelo menos não sabemos como lidar com esses porque eles vêm sempre moldados em uma verdade acessível, o falso óbvio. E, finalmente, que a filosofia proporciona uma abordagem e uma solução simples para essas questões: o refletir e o compreender e assim, torna uma transcendência possível. É por isso que apesar dos pesares, essa bastarda é tão atraente! Bem, e quanto a mim, posso dizer que sempre serei uma observadora, uma experimentadora. Que o silêncio e a paciência são coisas inerentes a mim. Que eu me abalo diante do desconhecido, mas o desconhecido me provoca. Nada me encanta mais do que descobrir. Que eu não acredito em relações perfeitas, mas acredito na comunicação, principalmente aquela em que não há palavras. Que a espera e a resignação para mim, embora todas as contaminações das quais estejam eivadas, não são vícios e sim ferramentas, estratégias. A elas dou um uso diferenciado do comum ou do óbvio, embora saiba que não devem ser utilizadas sozinhas e sim, em conjunto com outras. Quanto a essas outras, ainda estou descobrindo e vou adquiri-las aos poucos...

*abgrund: abismo.

** O homem é um animal político [portanto, sociável].

16


"Esses sonhos eram eloquentes, mas, além disso, eram belos. Esse é um aspecto que escapou a Freud na sua teoria dos sonhos. O sonho não é apenas uma comunicação (às vezes uma comunicação codificada), é também uma atividade estética, um jogo da imaginação, e esse jogo tem em si mesmo um valor. O sonho é a prova de que imaginar, sonhar com aquilo que nunca aconteceu é uma das mais profundas necessidades do homem. Eis aí a razão do pérfido perigo que se esconde no sonho. Se não fosse belo, o sonho poderia ser rapidamente esquecido. Mas ela voltava incessantemente transformando-os em histórias fantásticas."

A insustentável leveza do ser

quinta-feira, 13 de maio de 2010


Denovo sua presença.
Você num espaço suspenso me pedindo goiabas com maionese.
Eu te daria, te daria bem mais, desde que você permanecesse ali.
Queria que ficasse e visse minha avó louca e todos os seus amantes.
Te mostraria a casa cheia de primos, o jardim, a piscina.
Faria uma festa para os seus pais.
Mas você queria ir e eu não sabia para onde. Isso me enlouquecia.
Você ali, no quarto ao lado da cozinha, querendo ir.

Por que?

Eu iria trazer a maionese e as goiabas. Iria até o abismo para trazê-las pra você.
E embora só houvessem goiabas verdes, que diferença faria? Seu pedido era estranho, mas eu o realizaria ainda assim.
Queria que ficasse para que eu pudesse te mostrar o jardim.
Ele era tão lindo e imenso, e ainda estava úmido da chuva..
Queria que sentisse o cheiro da grama ainda molhada.
Queria partilhar com você o meu lugar secreto, o meu lugar preferido, escondido por trás das plantas.
Mas você não quis ficar.
Não me respondeu o porquê das goiabas com maionese. Elas ficaram lá, prontas, para ninguém degustar, porque afinal, quem mais no mundo pediria goiabas com maionese?
E quem mais as prepararia sem perguntar por que?

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Como captar um momento, um pensamento, uma impressão. Ou, de como escrever sobre o vazio..


Levantar da cama: um dia a mais, um dia a menos.
Espaços: pessoas e vãos.
Passos: pés e pensamento.
Pessoas: diferença e indiferença.
Janela: movimentos alheios.
Noite: peso etéreo de um dia diluído.
Respiração: cavidade acústica da sinfonia de uma ausência.
Travesseiro: debruçar-se em si mesmo.
Sono: flutuar em si mesmo.
Ventre: calor.
Esquina: Caramba! nunca tinha visto essa porta aqui!
Corredores: odores, lembranças.
Corpo: o outro.
O outro corpo: os olhos, a orelha, a esquina do queixo, a ponta dos dedos, o canto da boca, os pedaços do sorriso, o movimento das pernas, o odor da respiração. O suor.
Ser: precedido pelo nada.
Nada: possibilidades.
Dedos: ensaio sobre uma assinatura qualquer da alma.
Ansiedade: Peso completo, perfeito e inteiro de uma não saciedade.
Fim: aonde é que eu te encontro? te procuro em todo lugar e você não está. Não está nem em si mesmo!

sábado, 8 de maio de 2010



Era manhã e ele resolvera passar lá por um motivo qualquer. Talvez porque ela adoecera, talvez porque simplesmente houvesse dormido demais e acordara não se sentindo muito bem. A razão é que não havia motivo algum concreto que explicasse a necessidade de sua presença ao lado da cama dela.

Dentro do quarto, uma luz quente de sol espreguiçante invadia os móveis procurando cada faixa de escuro para explorar. Quem sabe embaixo da cômoda um tufo de poeira, algum brinco esquecido, uma anotação perdida, um canto de parede com uma mancha de infiltração.. Enfim, o sol, os sons, o gosto, a manhã.

A pele dela ainda morna, um sabor de quem sonhou até o hora em que abriu os olhos, e ele lá, sentado, ao lado da cama por um motivo qualquer. Aquele amigo que nunca a visitara. Se viam e se falavam razoavelmente pelos labirintos da faculdade, mas só. Ela o via, o observava, sabia que era bom falar com ele, mesmo que em miúdos, um assunto qualquer, reclamar de uma disciplina, de um professor imbecil.. Gostava de ouvir a voz dele e o tom como escarnecia das coisas malditas. Sempre em silêncio, sempre com aquele olhar de que fulminaria os tolos, os que não sabem o que fazem; quase debochava, quase sentia pena, mas fazia questão de sorrir e assentir com cada tolice, porque era assim que efetivava sua inteligência, simplesmente se divertindo e não se importando com a idiotice alheia.

Agora ele estava ali, paradinho, sentado numa cadeira no quarto dela. O sol também o invadia.

Ela se move na cama e senta, eles trocam palavras, ela ri. Ele fala de uma coisa qualquer enquanto ela pensa: será que ainda tem café? E ele continua lá. Ainda. Pelo motivo qualquer. A voz dele é boa, calma, baixa, constante, de uma inteligência segura. Então, finalmente ele levanta-se da cadeira, espalha do sol o calor que havia se acomodado entre as dobras de sua roupa e decide que é hora de partir. Ela assanhada, mal acordada, ainda enrolada nos lençóis, um pé no sono e outro na necessidade de acordar, se lança sobre ele e o beija. Joga seu corpo quente e etéreo sobre ele. Ele, óbvio, fica surpreso com sua ação, mas sente os lábios dela e o seu gosto de sono. Ela o beija com desejo, como uma quase confissão de tudo aquilo que ela pensa sobre ele. Sobre o seu silêncio, sobre o seus passos, sobre as suas presenças furtivas nos corredores da faculdade, sobre a vez em que ela ficou bêbada e conversou com ele até ficar rouca sobre coisas das quais não lembraria depois.. Sentiu dele o gosto de um silêncio corrompido, de um mistério que, ainda que violado, continuaria sendo mistério. Ela o apertou bem contra o seu corpo, correu as mãos pela borda de trás do cós da calça dele, a ponta dos dedos pelo fim de suas costas. Sentiu bem cada pedaço de sua boca, de seu hálito, das coisas que eram só dele e que ela queria, mas que sabia que não seriam suas. Por isso ela estava ali, dividindo aquele ar diluído e morno da manhã, tentando acomodá-lo em seu labirinto, entre as suas pernas, entre os seus braços, entre os seus cabelos, ente o seu sono e a sua língua.

Depois daqueles minutos de estalados macios e suspiros secos, ele segurou-a pelos braços e a afastou de seu corpo. Ela o olhou bem com sua opinião sincera e seu desejo despido. Sentiu que ele esteve lá quando ela estava em sua boca. E ele estava. Mesmo o seu silêncio produzira o ruído da afirmação necessária. Ela sentiu que sua saliva era mais do que uma água fria para se matar uma sede, era de um material que se esvaia e percorria o corpo todo. Suas mãos por fora, sua saliva por dentro, pela boca, pelo peito, pelo umbigo.. Ele olhou-a bem, e em seco silêncio se levantou.

Ela o acompanhou até o portão, o sol já estava mais forte, ela ajeitou a alça do vestido e percebeu que ele estava um pouco frouxo. Talvez repuxado pelos movimentos da noite, talvez roto pelas mãos e o atrito da blusa monocor dele. Sorriu. A mãe cuidava do jardim quando ela entrou para tomar o café.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O corpo de Elena.

Eu estava lá, de pé dentro de uma rede, pendurada em uma árvore.
-Quando eu era criança, pendurava uma rede pelas duas pontas num armador, depois entrava dentro dela, parecendo uma banana tomada pelas "paredes" da rede, e ficava brincando. Era exatamente o que eu fazia. As folhas da árvore balançavam e eu ia de uma ponta à outra, passando pelas pessoas sentadas em fileira de frente para a lateral da árvore. Eu ia e vinha, e um bebê, no colo de uma mãe, sorria. Estavam todos esperando, esperando alguma ordem que viria da eclésia monástica da cidade. Parece que eram eles quem davam a última palavra por ali. Então eu me balançava, e, do alto da árvore e da rede, podia ver o interior do edifício bem construído, ares de séc. XVII, erguido a pouco custo e já deteriorado pelo tempo e pelo esquecimento da cidade. Lá dentro, alguns padres e sacerdotes sentados, outros andando pelos corredores e lá atrás uma luz, vinda como dos fundos de uma igreja, revelava uma pequena cúpula que discutia preocupada sobre alguma coisa. Acho que a resposta que os pobres esperavam.

Girava ao redor da árvore, até onde os galhos me permitiam, e via na escuridão da noite, no passar das horas tristes da cidade, uma encruzilhada de terra, a passagem principal do povoado. Lá, uma pequena construção, igualmente deteriorada e esquecida, algo que lembrava um mastro, mas que, na verdade, deveria ter sido há muito tempo atrás um reservatório de água. Restava ainda a bomba antiga. Sob o pé da construção, uma pequena elevação de terra. Passava ali, e via os restos parados do tempo, os ares abandonados, os olhos dos que ficaram.

Mais adiante, numa varanda, uma moça trágica de pele clara e cabelos cor de ouro velho, soltos, exibia seu corpo nu deitada sob o peito do amante. Ainda apaixonada e doce, o corpo exalando aquele ar de pureza recém abandonada, passava a mão sobre o ventre e eu podia ver entre suas pernas aquele sexo miúdo em traços infantis. Percorria a sua mão pela pele e pelos cabelos e dizia: - Eu vi o meu corpo, cada vale da cidade, e estava cheio de vermes. Então eu mesma podia ver o seu corpo: ela deitada sob a areia, várias erupções e deformidades na terra, seus cabelos espalhados, seus olhos fechados, seus braços abertos, as pernas estendidas, e como se o seu corpo inteiro fosse apenas um vão cavado na terra, cheio de sulcos, vermes se moviam de um lado para o outro. E então novamente a cidade. Os vermes se moviam sob a cidade. Haveria guerra, a cidade seria destruída. A cidade perdida e abandonada seria devastada por explosões, rasgada por facas e balas de canhões.

Então eu corria, e via que um clima de inquietude exalava noite afora. Não havia para onde ir. As pessoas se moviam confusas à espera de algo que sequer sabiam, a mercê da desgraça iminente, pois não havia como sair dali. Levavam seus sacos de cereais, um punhado de roupas e um punhado de filhos para um lugar qualquer, embora não houvesse construções seguras naquela cidade. Apenas galpões cheirando a tonéis de vinho e comida envelhecida. Os cachorros perambulavam magros e indiferentes, como se à espera de uma compreensão pelo capítulo final. Já não tinham dono. Os seus, cuidavam de salvar a própria pele e a pequena prole atordoada.

Em uma esquina eu encontrava um bar onde alguns homens discutiam, passava então despercebida, pois pretendia entrar na casa do dono. Antes de chegar lá dentro, ainda no meio da rua, pude ver os soldados em seus trajes sujos de areia e desbotados pelo uso e pelo tempo. Um uso sem valia. Naquela cidade não havia pelo que lutar, não havia do quê a proteger. Mas usavam a farda, a mando da casa de milícia, por pura formalidade. Tinha tons de azul e vermelho, e algo de dourado, que àquela altura não era mais que uma amarelo pálido.

Os soldados empunhavam espingardas com baionetas. Sim! baionetas. Matariam os seus a canhões, tiros de espingarda e baionetas. Marchavam semi-dispersos pelas esquinas da cidade quando eu entrei na casa. Lá dentro não me senti aliviada, tampouco protegida. Apenas à procura de um possível abrigo. Via numa sala seguinte, uma porta entreaberta que dava para uma espécie de garagem. Um lugar grande, espaçoso, abandonado e cheio de areia. Havia chão de areia e areia guardada como se de uma construção interrompida. Lá no fundo, bem no cantinho, um fosso houvera sido escavado. Eu fui até lá, inspecionei e decidi que lá ficaria. Cavei o mais que pude o local, arrumei umas caixas de madeira carregadas de areia, dispus ao redor do buraco e pus no chão alguns lencóis. Havia um cão deitado em uma das caixas. Ele havia chegado lá primeiro. Seus olhos submissos e ávidos de compreensão, esperavam que resolução eu tomaria. Eu era um humano, ele um cachorro, se eu o expulsasse dali, certamente iria. Não o fiz, nem o faria. Eu invadira o espaço dele e agora pedia permissão para ficar e nos proteger. Em troca ele me faria companhia. E isso era tudo. Havia também um pequeno lêmure de corpo comprido e assustado que eu encontrara enrolado entre os lençóis. Parecia estar um tanto machucado e por isso tremia de medo. Eu precisava enrolá-lo para que não fugisse e sentia quando o líquido quente de sua urina atravessava as tramas do tecido. Agora eu teria que terminar de arrumar meu pequeno bunker de areia e lençóis, frágil, velho e opaco como tudo ali. Então, sem saber se de longe ou de perto, os bombardeios começavam. Lá do alto, bem de cima, subindo cada vez mais, eu via a cidade cinza, queimada e vazia. O galpão estava de pé. Metade da casa em ruínas, mas o galpão ainda estava lá. Onde eu estava? Não sei, também quis saber. A pequena cidade de Elena, pobre e corrompida, havia sido tomada pelos vermes: a guerra. E ela, Elena, a cidade, restava agora estendida sob a areia fria e sinuosa, cheia de cinzas e em pedaços..

domingo, 2 de maio de 2010



AUTUMN

Era madrugada.
Acordou
Olhou para os lados
Sentiu o suor que embebedava a cama
Viu as pequeninas marcas de sangue nos lençóis.
Ardia.
Sentiu bem o calor e as feridas.
Não fora um sonho
antes fosse um pesadelo
mas estavam lá
por todo o corpo
sobre a pele
e sobre os olhos.

Era Outono
as folhas caiam
e não havia frutos.
Só a estação
as dores
e o sono.